As lições de uma pandemia que mudou também o mundo hospitalar
Cientistas de todo o mundo têm trabalhado em ritmo acelerado desde o começo do ano em busca de uma vacina que possa combater, de maneira eficiente e segura, o vírus que já causou quase um milhão e meio de mortes em todo o planeta.
Se de um lado a pandemia de Covid-19 trouxe o caos, de outro, ela cobrou respostas racionais e imediatas das instituições hospitalares que acabaram por criar protocolos de atendimento a fim de salvar o máximo possível de infectados pelo coronavírus e resguardar as equipes médicas, funcionários e pacientes internados por outros
motivos.
Referência no atendimento médico pediátrico no Brasil, o Sabará Hospital Infantil adotou um conjunto de ações para mitigar os riscos a pacientes e familiares e identificou efeitos e consequências da doença. Embora apresentando efeitos menos nocivos no público infantil que em adultos, a pandemia também poderia gerar
impactos significativos, se não fosse devidamente tratada.
As lições que o Sabará tirou e tem tirado dessa espécie de ‘furacão’ no que até então o mundo chamava de ‘normalidade’ estiveram no cerne do “Simpósio Experiência Sabará com Covid-19”, um dos destaques do 5º Congresso Internacional Sabará de Saúde Infantil. Marco no calendário de saúde infantil no Brasil, o congresso este ano aconteceu de forma 100% online. A iniciativa é da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, mantenedora do Sabará Hospital Infantil, e do Instituto PENSI.
Protocolos de Gestão Hospitalar
Na Gestão Hospitalar, por exemplo, a criação de um protocolo específico para Covid-19 no Pronto Socorro do Hospital Infantil Sabará garantiu a segurança das famílias e das equipes médicas e mitigou os riscos de uma contaminação. A avaliação foi feita
por Thales Oliveira, pediatra e supervisor do pronto-socorro do Sabará, um dos palestrantes do Simpósio de Qualidade e Gestão Hospitalar, na grade do Congresso.
Ao lado de outros profissionais gestores do hospital, o pediatra afirmou que a implantação de um protocolo de atendimento já desde o começo da pandemia contou com uma série de ações para garantir segurança aos pacientes, familiares e equipes
de saúde. O PS foi dividido em ambientes respiratório e não respiratório, e os profissionais foram treinados a partir de uma orientação central: para que casos suspeitos de Covid fossem monitorados à distância –sempre que possível, evitando
internações desnecessárias – uma vez que em crianças, no geral, a doença tem menor gravidade que em adultos.
“A criança em bom estado geral recebe alta, e, assim que o resultado do PCR sai, em 48h, dando positivo, a equipe de agendamento entrava em contato com a família para ser feito o primeiro tele-monitoramento. Esclarecemos muitas dúvidas e passamos uma maior segurança ao orientar sobre sinais de alarme e medidas de isolamento para evitar a transmissão do vírus”, explicou. “Isso deu uma maior segurança até para a gente poder dar alta para estes pacientes”, avalia.
Transparência, define o pediatra, foi fundamental no sucesso do protocolo de atendimento também junto às equipes. “Fomos muito transparentes, e explicar nosso posicionamento e intenções facilitou muito para a equipe a adaptação a essa nova realidade”.
Gerente médico de Novos Serviços do Sabará, o endocrinologista Felipe Lora sublinhou a importância de, em um momento-chave como o de uma pandemia, se trabalhar a gestão da equipe – que passa a atuar, quase que subitamente, fora de sua rotina natural.
“Nos orgulhamos muito de como conseguimos resolver de maneira satisfatória o grande número de pacientes gerais ou de risco”, afirmou. “Planejamento é o que faz a diferença – 80% está no planejamento.”
Impactos da alta demanda no tratamento do diabetes
Na gestão de serviço pediátrico em período de alta demanda, por exemplo, o corpo clínico observou que, embora ainda sem um consenso na literatura médica, o impacto da Covid-19 sobre os tratamentos contra o diabetes mellitus tem sido notado por meio
de uma diminuição dos atendimentos precoces no ambiente do hospital. A percepção foi exposta pelo endocrinologista pediátrico Matheus Alves Álvares, membro do corpo clínico do Hospital e professor de Pediatria no Centro Universitário Lusíada.
“A maior parte dos estudos já feitos sobre a Covid não relacionou isso de forma relevante”, afirmou, sobre a pandemia incidir no tratamento do diabetes mellitus. “A literatura médica ainda permanece obscura sobre essa relação, mas, no nosso serviço, a impressão é que houve um aumento de diagnósticos”, disse, referindo-se a uma comparação com o ano anterior. Álvares também enfatizou que, quando solicitada a sorologia para o coronavírus, no entanto, nenhum paciente com o diabetes
detectado testou positivo para o coronavírus.
De acordo com Maria Emília Navajas, médica diarista da UTI cardiológica pediátrica cirúrgica no Sabará, foi observado com alguma frequência em pacientes sabidamente diabéticos um aumento da primo-descompensação no pico da pandemia, no primeiro semestre do ano.
“Recebíamos os pacientes para internações ou consultas bem no pico pandemia, mas, solicitado o PCR, não apresentavam o vírus”, disse. Na avaliação da profissional, aumentou-se o número de primo-descompensações “porque as pessoas demoraram
mais a buscar os serviços de saúde, até em um eventual exame de rotina, porque postergaram, permaneceram mais em quarentena. Mas não foi achada ainda a relação entre a Covid e o aumento da citocidose”, observou.
Transplantes renais em tempos de pandemia
No Simpósio de Nefrologia e Urologia Pediátrica no contexto da pandemia, o recado deixado pelas profissionais que comandaram o evento foi, na verdade, um alerta: a possibilidade de uma segunda onda de Covid-19 no Brasil pode impactar de forma severa os procedimentos de transplantes renais.
Embora com taxas recentes de recuperação, os transplantes renais pediátricos (de doadores vivos ou não) sofreram uma redução de quase 60%, no começo da pandemia, em relação à expectativa do período – com índices de redução de mais de 80% de transplantes envolvendo doadores vivos.
No painel, profissionais do Sabará abordaram aspectos da pandemia no tratamento renal – com a possibilidade de lesão renal aguda em pacientes graves de Covid, embora, em crianças, dada a menor gravidade da doença respiratória, as implicações renais também tenham sido menos presentes.
Os riscos de impacto nos procedimentos de transplantes constam de um estudo norte-americano apresentado no simpósio pela nefrologista pediátrica e médica assistente do programa de transplantes do Sabará, Luiza Ghizoni. De acordo com ela, de um
total de cinco centros voltados a pacientes pediátricos renais crônicos, em São Paulo, 26 pacientes tiveram Covid, e todos estão recuperados.
A nefrologista pediátrica do Sabará e professora da Escola Paulista de Medicina, Maria Cristina de Andrade, por sua vez, observou a importância de pacientes com Covid que sobreviveram à insuficiência renal, crianças ou adultos, não interromperem
o tratamento, já que não está descartado que o quadro possa evoluir para uma doença renal crônica. “Esses pacientes têm que ser acompanhados”, destacou.
O impacto da Covid nos transplantes renais no Brasil será conhecido apenas no começo de 2021, quando a ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos) divulga o relatório anual referente a 2020.
Diagnóstico e tratamentos para complicações da Covid-19
Já no simpósio “Experiência Sabará com Covid-19”, focado na análise de estudos sobre a detecção e o tratamento de complicações relacionadas ao coronavírus, o médico Marco Aurélio Sáfadi,coordenador da equipe de infectologia pediátrica do
Sabará, falou sobre as particularidades da Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIMP), fruto da infecção pelo Sars-CoV-2 e causadora de uma resposta inflamatória muito intensa, com manifestações em diferentes partes do organismo.
Sáfadi alertou para o risco de diagnósticos equivocados, em especial, a Doença de Kawasaki (DK) e a Síndrome do Choque Tóxico. Conforme o infectologista, uma característica que desafia os médicos no diagnóstico da SIMP é a ausência da presença do coronavírus, uma vez que a SIMP se manifesta apenas de duas a seis semanas após a exposição ao vírus.
“A maioria das crianças analisadas no hospital são previamente saudáveis e chegam com um quadro inflamatório grave. Mas as pesquisas recentes mostram que, apesar do PCR negativo, os pacientes têm marcadores de sorologia positivos para o Sars-
CoV-2”, comentou.
Dada a ausência do coronavírus, o tratamento da SIMP não envolve antivirais, e sim, imunomoduladores e anticoagulantes. Por outro lado, o médico advertiu que “a terapêutica da SIMP ainda não é consensual”. “É necessária a colaboração internacional em pesquisa para definir um tratamento e refinar os critérios de identificação, facilitando a distinção com choque tóxico e DK”, definiu o infectologista.
Já a médica Sandra Loggetto, hematologista chefe do Sabará, disse no mesmo simpósio ver com ressalvas a sugestão de terapia com anticoagulantes. “Qualquer processo inflamatório, mesmo um resfriado comum, vai provocar um aumento das proteínas inflamatórias, como ferritina e fator 8. No adulto, está mais que comprovado que isso é ligado ao risco de trombose. Mas na SIMP ainda não há consenso e há um risco grande do anticoagulante causar hemorragia nas crianças”, alertou Loggetto, para quem é necessário haver uma análise mais ampla do quadro clínico antes de se definir o tratamento. “Um exame sozinho não é suficiente. As crianças tratadas até o momento com anticoagulante tinham sempre uma comorbidade, como a obesidade”.
À frente de uma parceria entre o hospital e a Universidade de São Paulo (USP), a hematologista exibiu os dados iniciais de uma análise de 93 pacientes menores de 10 anos, admitidos entre março e setembro deste ano com um quadro de tosse, febre e coriza. Destes, 35% apresentavam ao menos uma comorbidade, entre doença
falciforme, asma, encefalopatia, nefropatia, alergia ao leite de vaca e prematuridade.
Apesar do estudo ainda não ter dados com significância estatística, Loggetto destacou que não foi observada uma relação entre as alterações no hemograma e os sinais de gravidade na crianças acometidas pelo coronavírus. Outro ponto interessante é que,
além de apresentar linfopenia, plaquetopenia neutrofilia eosinopenia como os adultos contaminados pela Covid-19, as crianças exibiram quadros de atipia linfocitária e monocitose.
Assessor científico do Instituto PENSI e presidente Departamento de Imunologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, o médico Antônio Condino Neto detalhou o trabalho que tem sido desempenhado pela Covid Human Genetic Effort, uma rede internacional de pesquisa, da qual faz parte o Hospital Infantil Sabará.
“No geral, as crianças e adolescentes não são muito afetados pela Covid-19. Ao mesmo tempo, vemos idosos com comorbidades que se recuperam, enquanto algumas crianças e adolescentes desenvolvem quadros muito graves, e acabam morrendo. Isto nos fez questionar se há uma suscetibilidade genética para o agravamento da doença”, comentou.
Ao fim, os pesquisadores apontaram que o melhor tratamento nas formas graves da Covid-19 é a combinação de corticoides — muito usados para tratar doenças autoimune — e imunoglobulinas, que eliminam o excesso da resposta inflamatória.