Mielomeningocele
A mielomeningocele é uma forma de espinha bífida (disrafismo) na qual uma parte da medula espinhal aparece como uma placa achatada que é exposta nas costas. É uma malformação congênita complexa, cuja morbidade e mortalidade têm diminuído consideravelmente com a melhor compreensão dos mecanismos fisiopatológicos que levam ao seu aparecimento.
Ao contrário do que se acreditava previamente, que durante o período embrionário o tubo neural se fecharia como um zíper, estudos recentes em camundongos sugerem que este fechamento envolve várias ondas de fechamento ao longo do neuroeixo. Desta forma, o fechamento do tubo neural ocorreria a partir da interação coordenada de pelo menos quatro ondas de fechamento descontínuas.
Apesar dos avanços na compreensão dos mecanismos bioquímicos e genéticos responsáveis pelo fechamento normal do tubo neural, das descobertas de numerosos modelos genéticos que explicam os defeitos de fechamento do tubo neural e da melhor compreensão da complexidade do metabolismo do ácido fólico, o mecanismo exato pelo qual estes fatores interagem e originam a mielomeningocele em seres humanos permanece desconhecido.
Cabe ao médico, portanto, o papel de estar sempre atualizado a fim de não só tratar o paciente, mas também orientar os familiares quanto às possíveis complicações que poderão surgir durante o período de crescimento do portador de mielomeningocele.
Tratamento
O tratamento da mielomeningocele deve ser iniciado o mais precocemente possível objetivando a diminuição da morbidade e mortalidade do paciente. Pacientes instáveis podem aguardar até 72 horas após o parto sem que haja um aumento significativo das complicações. É comum a coexistência de anomalias malformativas sendo que a maioria não oferece risco de vida. No caso de malformações graves e incompatíveis com a vida cabe ao profissional médico manter o paciente o mais confortável possível, orientar e oferecer o suporte familiar necessário.
O tamanho do defeito deverá ser avaliado e a integridade da bolsa acessada. Nos casos em que ocorre a ruptura da bolsa é preconizado o uso de antibióticos antes do procedimento de correção, não sendo estes necessários quando a mesma se encontra íntegra. É importante a proteção da medula espinhal exposta (placódio) com material estéril e úmido, além de se evitar deitar sobre a lesão. Além disso, o placódio não deve ser escovado e nem tensionado. Estes cuidados são importantes uma vez que o placódio é tecido funcional, havendo experimentos demonstrando condução nervosa e melhora da força no pós-operatório.
Recentemente alguns serviços começaram a preconizar o fechamento precoce da mielomeningocele durante a gestação, com resultados que apontam para uma tendência à diminuição da incidência de herniação das amígdalas cerebelares (Chiari II) e da dependência da derivação ventrículo-peritoneal.
Concomitante à abordagem cirúrgica, o paciente deverá ser avaliado pelas demais especialidades, especialmente urologia e ortopedia, a fim de se descartar lesões que necessitem de uma intervenção precoce com a finalidade de minimizar a morbidade da doença.
O neurocirurgião, no curto prazo, deverá monitorizar o tamanho da cabeça, a fim de diagnosticar precocemente quadros de hidrocefalia com características hipertensivas. Mais de 80% dos pacientes portadores de mielomeningocele desenvolvem hidrocefalia, necessitando tratamento neuroendoscópico ou procedimento de derivação ventrículo-peritoneal (DVP) – retirada do excesso de líquor da cabeça a ser absorvido na cavidade abdominal pelo peritônio. A malformação de Chiari do tipo II, invariavelmente presente nestes pacientes pode se manifestar com quadros de apnéia, cianose, refluxo gástrico. No entanto, a evolução mais comum é de melhora com o tempo, devendo a cirurgia corretiva ser considerada como último recurso.
Nossa prática pessoal mostra que do ponto de vista radiológico, praticamente todos os pacientes da clínica de mielomeningocele apresentam imagem de medula presa ao exame de ressonância magnética. Sendo assim, cabe ressaltar que na prática clínica menos de 10% destes pacientes apresentam sintomas clínicos compatíveis com este achado. Os principais sintomas sugestivos de medula presa sintomática são: piora neurológica tardia, escoliose progressiva, deformidades ortopédicas, espasticidade progressiva, dor à percussão da cicatriz cirúrgica e alterações urodinâmicas. É muito importante que se descarte o mal funcionamento do sistema de derivação como causa destes sintomas, uma vez que sua revisão resulta muitas vezes no desaparecimento dos mesmos. Uma vez confirmado o funcionamento do sistema de derivação, deve ser indicado na persistência dos sintomas, o procedimento de liberação da medula.
Por se tratar de uma complicação de doença malformativa, o local a ser abordado cirurgicamente apresenta tecido cicatricial abundante além de alterações anatômicas sempre diferentes em cada paciente. Desta forma, cada cirurgia apresenta particularidades próprias, devendo sempre se alertar aos familiares sobre as mesmas bem como em relação aos riscos de piora neurológica inerentes a uma abordagem desta natureza. Pode acontecer da medula ancorada em porções altas estar recebendo parte de seu suprimento vascular a partir do local de aderência, o que aumenta o risco de piora neurológica após a manipulação. Nestes casos, é recomendável cuidado extremo tanto na indicação do procedimento, quanto na orientação dos familiares e de toda equipe de reabilitação quanto à possibilidade de perda de função adicional.
Os sintomas da malformação de Chiari II também podem se manifestar mais tardiamente como perda de força muscular e espasticidade nos membros superiores. Nestes casos, a cirurgia tem como objetivo aliviar os sintomas compressivos das amígdalas cerebelares sobre a medula espinhal cervical alta. O procedimento cirúrgico em fases mais tardias é mais efetivo que em neonatos, com menor morbidade.
Alguns pacientes durante sua evolução podem apresentar siringomielia. Nestes casos, excluindo-se como causas primárias o malfuncionamento do sistema de derivação e a malformação de Chiari II, que quando corrigidos podem resultar no desaparecimento espontâneo da siringomielia, deve-se considerar como tratamento a derivação da cavidade siringomiélica, de forma regional ou para a cavidade peritoneal.
Fica claro então que o paciente com mielomeningocele necessita de uma abordagem interdisciplinar e que a correção e tratamento das complicações devem ser feitos o mais precocemente possível a fim de se possibilitar o quanto antes o início do processo de reabilitação.